É emblemático que o brutal estupro cometido por 33 homens a uma adolescente de 16 anos, no Rio de Janeiro, tenha ocorrido dia 21 de maio, três dias depois do 18 de maio, dia nacional de combate ao abuso e exploração sexual contra crianças e adolescentes. Emblemático, mas não inusitado.
Entre o caso da menina estuprada coletivamente no Rio de Janeiro e aquele que motivou o surgimento do 18 de maio, o da criança Araceli, ocorrido em Vitória/ES, em 1973, há muitas coisas em comum, para além da proximidade das datas. Araceli, de 8 anos, e a moça carioca, de 16 anos, foram vítimas de vários homens que as atacaram simultaneamente e dopadas com drogas para terem suas resistências anuladas e seus gritos silenciados. Araceli teve o rosto desfigurado com acido, os seios, a boca e a vagina dilacerados, e parte do corpo carbonizado, tendo sido encontrada seis dias depois do seu sumiço, e os acusados, filhos de famílias tradicionais da cidade, nunca foram punidos. A menina carioca teve seu corpo e a cena do estupro viralizada nas redes sociais – outra forma de dilacerar a dignidade e o corpo das pessoas, tratada, também, como pornografia infantil – e foi encontrada pela família três dias depois do estupro, quando retornou para casa num estado deplorável, mas só foi ao hospital e registrou ocorrência na polícia dois dias depois, com as investigações ainda em levantamento dos suspeitos.
No caso de Araceli, a barbárie do crime e impunidade dos algozes tornou-se o símbolo máximo do enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes, marcada no calendário nacional mediante o Decreto nº. 9.970/2000 que estabeleceu o 18 de maio como data para que a sociedade, as famílias, as escolas, as igrejas, a mídia, as empresas e o Estado, enfim, todas as pessoas, reflitam e atuem – via caminhadas, palestras, panfletagens, reuniões e outros meios – em prol de uma maior sensibilização social para com essa drástica violação de direitos humanos. No caso da adolescente carioca, o que poderá repercutir a situação, conectado ao contexto mais amplo de violência sexual que afeta milhares de crianças e adolescentes no Rio, no Brasil e no mundo?
Segundo dados do Disque 100, entre 2011 e 2015 houve 99.903 denúncias de abuso sexual e 27.316 denúncias de exploração sexual. Só em 2015 foram 17.583 denúncias de violência sexual que tinham por vítima criança ou adolescente, revelando, na letra fria dos números, a cruel realidade da violência sexual que afeta majoritariamente as mulheres – sejam crianças, adolescentes ou adultas. Além disso, ela é naturalizada por uma “cultura do estupro” que tem, no cerne, a orientação machista de culpabilizar a própria vítima e/ou seus familiares pelo crime ocorrido, sem falar nas ressignificação dos atos criminosos como condutas “aceitas” de “masculinidade”, tal como foram vistos, às centenas, nos comentários às postagens feitas na rede sociais sobre o caso da adolescente carioca.
Não há uma única forma de intervenção sobre tal cenário, mas existe um conjunto de proposições estabelecidas desde 2000, quando da aprovação do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes, estando, desde 2013, na vigência do II Plano Nacional. O que este plano nos indica, de mais substancial, é a urgente necessidade de pensar a intervenção desde uma lógica de atuação intersetorial e multifocal (desde a prevenção, a pesquisa, a mobilização social e o protagonismo infanto-adolescente, até chegar ao atendimento, à repressão e à responsabilização), buscando antecipá-la para o momento de aprendizagem e formação dos sujeitos e não somente no “apagar das luzes” da violência cometida. Fundamentalmente, é preciso avançar no entendimento da violência sexual desde a perspectiva do reconhecimento dos direitos sexuais de crianças e adolescentes e da promoção de uma cultura de atuação socioestatal de respeito à sexualidade infanto-adolescente e de fortalecimento dos mecanismos de prevenção e autoproteção diante dos diversos riscos que podem ocasionar a violência sexual, assim como o melhor entendimento dos sujeitos sobre suas sexualidades e sobre as formas de exercer seus direitos.
Por isso, reitera-se, uma vez mais, o papel da educação sexual emancipatória como elemento que deve perpassar a formação dos sujeitos nos diferentes ambientes de socialização (família, escola, igreja, comunidade etc.). Não para disseminar “ideologias de gênero” ou “influenciar a sexualidade” das crianças, como querem nos fazer crer algumas pessoas, mas para colocar o “dedo na ferida” sobre a sexualidade e os direitos sexuais desde uma perspectiva muito mais ampla do que somente “falar de sexo”, com base nas discussões sobre masculinidade e feminilidade – e de como se deve problematizar o afeto que é construído sob a lógica da vingança ou do ciúme, da erotização e da mercantilização dos corpos, em suma, da transformação de sujeitos em objetos sexuais – e na obtenção de informações pertinentes para compreender-se melhor e saber lidar com as diversidades e as desigualdades existentes no mundo, sobretudo num momento em que crianças e adolescentes estão em condição peculiar de desenvolvimento.
Também é preciso sinalizar a urgência da disseminação e efetivação do II Plano Nacional, seja por meio do efetivo cumprimento de suas medidas pelo governo federal, seja pela adoção por estados e municípios, aderindo a uma proposta já cristalizada do Estatuto da Criança e do Adolescente, de pensar o problema (violência sexual) desde o olhar mais amplo das condições sociais de vida (suas causas), atentando para os vários responsáveis que lhe devem atenção/intervenção (Estado, família e sociedade) e entendendo crianças e adolescentes como prioridades absolutas de garantia de direitos sexuais.
Não à toa, tanto no Rio de Janeiro, quanto em Vitória/ES, cidades tratadas no presente texto, a rede de enfrentamento à violência sexual ainda é frágil, fragmentada, e os planos municipais e estaduais para tratamento da temática estão desatualizados e estagnados.
Assim, lança-se o desafio à sociedade e ao Estado brasileiro para que façam desse caso carioca um mote para alavancar as discussões sobre o tema da violência sexual e da promoção dos direitos humanos, em especial os direitos sexuais de crianças e adolescentes. Não no sentido de aguardar o próximo 18 de maio para voltar às ruas e à sensibilização social sobre o problema, mas de fazê-lo alvo de um real planejamento e engajamento cotidiano, somando esforços para a construção de uma transformação civilizatória: a superação (ou, ao menos, a efetiva confrontação) da “cultura do estupro” – e das várias dimensões que configuram a violência sexual.
Defendemos a instauração de uma cultura de promoção e defesa de direitos sexuais, no contexto dos direitos humanos, em memória de Araceli, por respeito à adolescente carioca e às milhares de crianças e adolescentes que têm o direito de se desenvolver e viver sua sexualidade com respeito, com orientação, de forma saudável e protegida.
Façamos bonito! Crianças e adolescentes são sujeitos de direitos, de desejos e de sonhos. Por uma cultura do respeito, do diálogo e da não violência.
Assis da Costa Oliveira e Karina Figueiredo. Respectivamente, professor de Direitos Humanos da Faculdade de Etnodiversidade da Universidade Federal do Pará, doutorando em Direito pela Universidade de Brasília e apoiador do Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes. Advogado; e assistente social, mestre em Política Social, professora da Universidade Católica de Brasília e secretária executiva do Comitê Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes.